Professor gaúcho narra a experiência com a enchente que matou dezenas no Texas: “Região é famosa por enxurradas velozes”
Marcio Giacomoni vive nos EUA desde 2008 e passava o feriado em Kerrville, uma das localidades mais atingidas pelo fenômeno

Quando decidiu passar o feriado de 4 de julho com a família em Kerrville, cidade de cerca de 24 mil habitantes no interior do Texas, o professor Marcio Giacomoni não havia recebido nenhum alerta sobre os riscos de enchente na região. Giacomoni, que é gaúcho, formado pela Ufrgs, vive no Texas desde 2008, quando foi fazer seu doutorado. Hoje, é professor da Escola de Engenharia Civil e Ambiental da Universidade do Texas em San Antonio.
No fim da semana passada, ele aproveitava o feriado em família quando a região foi atingida por uma enchente que deixou pelo menos 82 mortos. A casa alugada pela família fica localizada próximo à margem de um dos riachos que abastecem o rio Guadalupe, que transbordou. Giacomoni explica que a região é atingida por enchentes e enxurradas com certa frequência “Essa região é famosa por enxurradas velozes. Exatamente na região de Kerrville, houve um evento muito semelhante em 1987. Mas em outras cidades próximas ocorrem com frequência enxurradas. Não tão grandes como essa, mas com fatalidades.”
No dia 12 de junho deste ano, ao menos 13 pessoas morreram em uma enxurrada que atingiu San Antonio.
“As características geográficas contribuem fundamentalmente para as cheias. A região se caracteriza por solos muito rasos, com formações de calcário, onde há pouca infiltração. Outro fator são as declividades do terreno, onde a água escorre rapidamente. Um terceiro fator foi a questão meteorológica. Tivemos uma massa de umidade muito forte vinda do Golfo do México.”
Ele relata que a região é predominantemente rural. As margens do rio Guadalupe, que era repletas de árvores, ficaram devastadas em diversos pontos.
O professor afirma que não há grandes semelhanças entre a enchente que vivenciou no Texas e as cheias que atingiram o Rio Grande do Sul em maio de 2024.
“São eventos hidrológicos diferentes, especialmente porque as enchentes no RS tiveram relação com chuvas mais prolongadas. Há alguma semelhança entre as enxurradas daqui com o que ocorre no Vale do Taquari, onde as águas sobem rapidamente, mas não dá para fazer comparação com Porto Alegre, por exemplo.
Feriadão em região turística
A região mais atingida pela enchente é chamada de Texas Hill Country e fica localizada no centro-sul do estado do Texas. A localidade rural tem grande potencial turístico e atrai visitantes ao longo de todo o ano, mas principalmente no período atual, que é o verão nos Estados Unidos. É como a relação dos gaúchos com a Serra, exemplifica Giacomoni.
O professor conta que, nesta época, são comuns os acampamentos de crianças, em função das férias escolares. Entre os mortos, 27 estavam em um desses acampamentos. O movimento na região nos dias em que ocorreu a enchente era ainda maior em função do feriadão de 4 de julho nos EUA.
Giacomoni acredita que o elevado número de mortes tem relação com o período em que ocorreu o fenômeno.
“Foi uma combinação de uma série de fatores, o feriado, o verão, as crianças nos acampamentos e o horário. Começou a chover pelas 23h da quinta, choveu a noite inteira e as enxurradas começaram já pela madrugada. Se tivesse ocorrido no inverno, por exemplo, é bastante provável que o número de acampamentos e visitantes fosse menor.”
Alerta chegou tarde
O alerta do sistema nacional de meteorologia (National Weather Service) chegou tarde. Giacomoni afirma que recebeu notificações sobre o evento somente pela manhã, quando a enxurrada já havia causado estragos. A esposa, por exemplo, não recebeu qualquer alerta.
“Ainda não se sabe se houve erro na previsão ou na distribuição das mensagens. Eu recebi a primeira mensagem de alerta quando acordei. Já tinha chovido a noite inteira. Algumas pessoas não receberam o alerta, outras estavam dormindo.”
A orientação era de que as pessoas só deixassem suas casas em caso de risco iminente de morte. No episódio de junho, a maior parte das mortes foi de pessoas que estavam em veículos que foram arrastados pela força das águas.
A casa em que o professor Giacomoni estava com a família não precisou ser evacuada. O imóvel, construído com bastante altura em razão da segurança, foi atingido no andar térreo, mas a família estava no piso superior.
Sistema de alertas
Diante das mudanças climáticas, que fazem aumentar em frequência e intensidade os eventos climáticos extremos, Giacomoni chama atenção para a necessidade de melhoria dos sistemas alertas.
“Não há recursos para se fazer obras de engenharia suficientes para proteger todas as pessoas e lugares. Uma maneira de minimizar a perda de vidas, seria melhorar monitoramento hidrológico, medição das chuvas e do nível dos rios, associados a sistemas de alerta que possam fazer previsões em tempo real. E não basta a previsão existir, ela precisa chegar nas pessoas e elas precisam saber o que fazer.”
Fonte: Correio do Povo